30.1.08

2nd short story

Estava sentada no ultramoderno divã do psicanalista há horas. Já nem sabia quantas consultas já tinha tido.

As imagens projectadas no tecto sucediam-se para que dissesse a primeira coisa que me viesse à cabeça sobre aquelas negras manchas abstractas: “Sangue, dor, violação, traição, mentira”… Achava que já as tinha dito a todas. Todas as que tu precisavas de ouvir para me marcares mais uma série de consultas. Não que estivesse maluca, mas gostava da luz filtrada do espaço onde, uma tarde por semana, desde que tentara o suicídio, aquele homem de voz grave falava sem pressas.

Para mais, permitias-me fumar enquanto me ouvias falar do passado, do presente e das minhas expectativas de futuro. Ouvias-me com uma atenção cativante e lembravas-te de tudo ao pormenor.

Apenas na última sessão te havia notado alguma desconcentração quando, ao esticares-me a mão para me ajudares a levantar do divã de couro preto, a saia me subiu um pouco mais. Notara-te um ligeiro tremor no lábio e uma pausa mínima no discurso.

Ficara ansiosa por esta nova consulta. Queria sentir-me despida pela tua mente, como sempre acontecia, mesmo quando a saia não subia, mas nada me preparara para o que estava prestes a acontecer.


postado por cromossoma X

É engraçado poder mexer com a cabeça das pessoas. A pouco e pouco fui subjugado por ti. Mas sempre fui um profissional. Daí o meu ar atento, as concordâncias, os silêncios magnéticos.
Mal sabias tu o que estava montado, numa sala contígua, aquela mesmo por detrás do espelho que era apenas um vidro anti-reflexo. Tinha ficado desorientado e inebriado por ti desde o primeiro cheiro que poisou sobre o consultório. Admito que me provocava e foi isso que me fez comprar uma quantidade de câmaras de vídeo de alta definição.
Uma estava apontada à tua cara, escondida pelo candeeiro que fitavas.
A segunda apontava os teus seios, escondida pelo alarme de incêndios.
Depois fui colocando várias nas mais variadíssimas posições.
Tinha o teu queixo, os teus olhos, a tua anca, o teu tornozelo, a magnífica curva da coxa, os braços que mexias e abrias e fechavas enquanto falavas.
Tinha-te toda, sempre gravada. Horas a fio. Nem precisava de montagem, pois no quarto secreto tinha montado toda uma suíte de vídeo na qual poderia examinar-te, estudar-te, ver-te e desejar-te.
E foi num desses dias, em que não estavas, que comprei duas prostitutas que viveram esse quarto e essas imagens comigo.
Confesso, atingi várias vezes o nirvana. Mas nunca serias tu, paciente que confiavas na minha profissão.
Não podias ser tu.

publicado por cromossoma Y


Comecei a sentir necessidade de estar contigo mais vezes. Aquela tarde semanal, às vezes quinzenal, não me chegava. Queria poder acabar com aquelas consultas da tanga, mas não sem antes ter outra forma de poder estar contigo sempre que me apetecesse.

Por outro lado, era melhor controlar esse meu desejo. O último homem por quem tinha sentido algo semelhante não tinha acabado muito bem e fora por isso que toda a minha vida se precipitara, perdendo por algum tempo a sanidade, para sempre amigos e contactos. Valera-me ser filha de boas famílias com mais do que muito dinheiro para me sustentarem. Ainda assim, a minha mesada era entregue apenas mediante as facturas das consultas do psicanalista.

Tive a preocupação de procurar um psicanalista com alguma reputação, mais pelo seu charme, do que pela competência. Não tencionava nem por um segundo ficar ali a falar da minha vida, das minhas situações-limite, de quem eu era, com um gajo que, para além de bastante mais velho, não conhecia de lado nenhum. E de facto, não sei se serias grande psicanalista. Poucas palavras que correspondessem à verdade tinhas ouvido da minha boca durante todo aquele tempo, mas continuavas naquela tua linha suave, de quem fala e deixa falar, por vezes guiando um pouco a conversa para o assunto que querias, outras, deixando-me seguir à minha vontade.

Por vezes ocorria-me que te assustava. Talvez fosse por isso que não te aproximavas mais. Certamente terias conhecimento pelo meu historial clínico de muitas coisas que nunca havia abordado nas consultas. A forma como tinha acabado a minha relação tinha sido “sui generis”. Provavelmente sentias-te confuso por nunca teres tido aquela mesma mulher ali no teu divã. Provavelmente perguntavas-te o que fazia eu naquelas consultas. Tinha começado a ir pelo dinheiro, obviamente. Depois começaste a fazer-me sentir menos depressiva. E depois, por ti, pelo ambiente criado em teu redor, pelo circo que eu montava na minha cabeça enquanto deitada naquele divã.

Parecia sentir-te logo atrás de mim. Tinha a sensação do calor que subia do teu corpo e que sentia a tua respiração no meu pescoço. Ou era o calor! Suava em bica no teu consultório. Fazia lá sempre um calor infernal. Daí que tivesses sempre uma ventoinha ligada que, de tempos a tempos, fazia a sua brisa soprar levemente no meu pescoço e que eu permitia imaginar que eras tu.

Naquele dia deixei-me ficar dentro do carro à espera que saísses do consultório. Queria ver onde irias. Precisava saber que locais frequentavas, se queria ver-te fora daquele lugar.


postado por X

Nesse dia não tinha mais consultas. Reservava sempre o resto da tarde depois da tua hora. Queria ver se as imagens de ti tinham sido captadas e gravadas. Sentei-me nesse quarto secreto a ver-te rir e chorar, ficar séria ou gritar. Revi o ódio nos teus olhos quando falavas do teu ex, assim como notava todo o teu encanto quando falavas de coisas triviais.
Sentia uma paixão sobre ti. Mas não sabia se era sobre ti física ou se sobre a tua alma.
Encantavas-me com o teu mundo perturbado, mal sabendo tu qual seria o meu.
Nesse dia apeteceu-me fazer as minhas coisas, só minhas, no meu mundo secreto só meu.
Nunca esperei que tivesses a louca ideia de me seguir e por isso nem sequer reparei em ti ou teu mini azul. Sim, eu sabia qual era o teu carro, pois espreitava-te do consultório a atravessares a rua todas as vezes que nos despediamos.
O caminho até ao meu esconderijo não era muito longo. Consegui arrendar um armazém enorme em Xabregas, a caír aos bocados e à espera de intervenção divina. Mas era nele e não em casa que gastava as minhas horas e os meus encantos. Fazia colecções, sabias? Colecções de quadros velhos e gastos pelo pó, de molduras partidas ou estragadas pelo tempo, de espelhos quebrados ou gastos, de janelas típicas de um país que deixou de existir.
Outra das minhas manias era conseguir retratos de toda a minha árvore geneológica. Ainda faltavam muitos e sabia tarefa impossível. Mas tinha um amigo alfarrabista que juntava todos os artigos que tivessem algo a ver com a minha grande família. Mas a maior parte do armazém estava reservada para um piano de semi-cauda e o seu banco. Havia mais uma cadeira e uma estante. Era aí que descarregava todos os meus receios e também era aí que, de vez em quando, um amigo violinista fazia o mesmo comigo. Conhecíamo-nos há anos e esta foi a forma que encontrámos para melhor falarmos e sermos unos.
O armazém tinha ainda uns sofás velhos tapados por mantas coloridas e muitas almofadas em redor. Não havia tv mas uma aparelhagem sofisticada cujas colunas faziam soar e ecoar os sons mais perfeitos para o meu gosto.
Mas antes de lá chegar, fui beber um copo à esplanada da Graça, bairro que habitei muitos anos e espaço onde escrevi quase tudo que escrevi de jeito. Gostava de beber um Jameson e ver o fim do dia. Depois jantava em tascos ali perto. Tinha um ou dois preferidos e ia a cada um alternadamente.
Gostava de jantar sózinho onde escrevia e desenhava nas minhas sebentas coisas acerca dos meus pacientes. Metade das quais era sobre ti. Como te encantar? Como te seduzir?
Mas sou tímido por natureza no que respeita a relações humanas. Já passei por algumas que conheceram sempre um fim. E um fim é das coisas que mais me abala. Por dentro e por fora.

publicado por cromossoma Y

Segui-te. Observei-te, sentada no mini, a tomar a tua bebida na esplanada ao pôr-do-sol, enquanto escrevinhavas qualquer coisa num caderninho já muito coçado. De vez em quando paravas e contemplavas a cidade à tua volta, a pressa das pessoas que passavam enquanto tu gozavas prazeirosamente o tempo que tinhas para perder. Vi-te esboçar um sorriso ao de leve. Reparei como ficavas bonito quando sorrias e como o teu olhar sorria contigo. Achei-te só. Feliz e terrivelmente só. Resignado com a solidão, talvez. Um homem como tu estava destinado a ser amado e a ironia de não o seres dava-te a sensação de seres especial. Como se fosses algo que os outros não compreenderiam.
Vi-te jantar numa daquelas tasquinhas encantadoras de tão típicas. Apontei mentalmente o seu nome e o caminho que seguiste até Xabregas. Nunca ali havia estado.
Pela pequena janela do armazém, junto ao portão de chapa metálica, vi-te colar umas fotos no teu album, deitares-te no sofá com ar pensativo e sentares-te ao piano tocando uma melodia triste acabada de inventar naquele mesmo instante. A forma como acariciavas as teclas fez-me ter vontade de te tocar da mesma forma, a melodia trouxe-me a vontade de ser tocada e de ser eu própria a tua obra.
Depois, de repente paraste de tocar. Notei que me olhavas. E eu, sem pensar, encostei os meus lábios ao vidro, soprei uma lufada de ar quente fazendo-o embaciar e de seguida escrevi com a ponta do dedo: "Quero os teus segredos" e sorri.

Postado por cromossoma X

Enquanto tocava um improviso tive um arrepio estranho. Algo não estava bem. Parei de tocar com acordes graves e fortes cuja vibração me dissesse o que descobrir. E olhei para a janela. Fiquei estupefacto, sem nenhuma reacção. Vi-te embaciar o vidro com um magnífico beijo, um beijo que eu ansiava há tanto. E depois escreveste qualquer coisa. A minha maior vontade era correr, abrir o portão e arrastar-te para mim. Mas não tive força nas pernas. Fiquei quedo e mudo durante muito tempo. Ouvi a tua risada, os passos de fugida e o roncar do motor. Ainda ficaste por ali à espera de me veres ao portão para imediatamente acelerares e te despedires pelo espelho retrovisor. Mas como não o fiz, arrancaste devagarinho, como quem fosse dar uma volta de carro apenas pelo gozo de conduzir.
Olhei para o piano e saíu-me uma melodia maldita, trovejante, poderosa que ia perdendo a sua força para dar lugar a uma melodia primaveril, delicada e a ti dedicada. Gostava que a tivesses ouvido, pois perdeu-se para sempre naqueles minutos. O meu coração batia forte, estava ao rubro. O teu beijo e as tuas palavras afirmavam um interesse que eu pensava não existir recíprocamente. E agora tinha a grande dúvida se brincavas comigo ou, se na verdade, gostarias de mim.
Fui deitar-me no sofá após colocar um dos meus cds favoritos na aparelhagem. Com o comando ia aumentando o som, para ver se ele abafava o do meu coração. As batidas quase que se cruzavam e entrelaçavam.
Quando é que estaríamos juntos outra vez? Na sessão, logicamente. E faltava uma eternidade até lá.

Postado por cromossoma Y

Conduzi. Conduzi sem destino durante horas a fio. Até que me encontrei na rua do teu consultório. Parei o carro, já mais calma, tranquei as portas e enxuguei uma lágrima teimosa que não deixava de tremeluzir no meu olho esquerdo. Como podia eu voltar ali? Como podia eu ir às tuas consultas e falar-te sobre ti? Dizer-te que vivias na minha mente e que eu vivia para aquelas consultas. Dizer-te que quando te observara, desejara estar contigo, a teu lado e ouvir o que dizias sem falar. Como dizer-te que gostava que te sentisses à vontade para partilhar os teus silêncios comigo?! Não podia. Isso ultrapassaria todas as barreiras éticas e profissionais. Destruiria a tua carreira. Mas eu queria conhecer-te tão bem quanto tu me conhecias a mim. Não que conhecesses a minha vida, mas conhecias o meu ser. Conhecias os meus princípios e julgo que sabias o que queria da vida, talvez melhor do que eu. Sabias quando estava triste, irritada, enraivecida ou simplesmente tranquila. Não sabias o que o motivava porque eu inventava sempre alguma história para que não soubesses tudo sobre mim, para manter o interesse e motivar a marcação de posteriores consultas, para que não desses o teu trabalho por terminado.

Na rádio, passava uma melodia semelhante à que te ouvira tocar. Desliguei-o num acesso de raiva e recostei o banco. Fechei os olhos e imaginei-nos abraçados no divã. Era assim que adormecia todas as noites. Era o único pensamento que me tranquilizava o suficiente para poder adormecer, mas nunca era enquanto dormia que sonhava contigo; sonhava contigo acordada. Assim que abria os olhos pela manhã, brindava-te com um "bom dia", tomava o pequeno-almoço enquanto falava contigo e te contava as notícias do dia que havia lido na net, antes de te levantares. Levava-te a meu lado no carro quando ia passear e mostrava-te os locais de que mais gostava. Jantava contigo. Ia ao cinema e a concertos contigo. E já tarde, todas as noites, me deitava contigo.
O truz-truz no vidro da janela do carro e a luz ensurdecedora da manhã assustaram-me e só ao fim duns segundos consegui discernir que era o teu "eu" real aquela minha visão, encostado ao vidro da janela do carro.

postado por cromossoma X

Depois de bater ao de leve no vidro, tive que fazê-lo com mais força. Estavas adormecida ou outra coisa qualquer. Algo me impeliu para ir ter contigo. Trocar umas palavras fora do consultório, saber como te mexias numa mesa de café ou como comias num restautante. Queria conhecer-te melhor, mais profundamente. Mas queria também evitar que tu o percebesses, que contasses com o meu desejo e te oferecesses de mão beijada. Nem sabia se o irias fazer, quanto mais sabê-lo em ti.

Acordaste ou abriste os olhos. Não percebi a diferença. Sei que ficaste assustada quando me viste e a tua primeira reacção foi ligar o carro e fugir. Mas eu toquei outra vez ao de leve no teu vidro, desta vez deixando ficar a mão encostada. Mão cujos sinais eram ampliados pelo vidro. Reparei que olhaste para as linhas da vida e do coração. E também do amor. Fiquei ali com a mão bastante tempo só para que lesses tudo com cuidado. Assim terias algo sobre mim e não seria só eu a escrevinhar coisas sobre ti.

Mas, num repente, arrancaste a toda a velocidade, fugindo de mim, da minha mão e dos meus traços. Fiquei arrasado.

Postado por cromossoma Y


Fugi. Fugi de ti, mas principalmente de mim. Fugi durante muito tempo. Fugi para muito longe. Viajei. Vi o mundo. Conheci os homens. Mais alguns, pelo menos. Casei. Tive uma filha. Divorciei-me. Voltei para Portugal quando achei que já não me importavas. Quando achei que era outra e tu serias outro.

Foi um encontro fortuito. Até já tinha esquecido que gostavas daquele restaurante. Jantava lá com um homem, um dos muitos que me entretinham durante uns dias e nunca me faziam interessar por eles quando já os conhecia. Homens simpáticos, agradáveis à vista, quase todos pelo menos. Homens com dinheiro, bem sucedidos, vazios… não sabiam apreciar um filme, uma música, um quadro, um olhar ou uma paisagem. Não conheciam a mente humana e pareciam desconhecer que outros para além deles próprios a tivessem. Homens inteligentes, vividos, que desconheciam que outros também pudessem ser inteligentes e ter vivido. Nunca me pronunciei com algum sobre isso. Para quê? Olhariam para mim como se fosse louca, far-me-iam um sorriso condescendente e dir-me-iam o quanto estava bonita e graciosa naquela noite. Proporiam um brinde, como propõem sempre, e ansiariam pelo momento de me meterem na cama e eles comigo. Sabia o procedimento de cor, mas deixava-o decorrer sem incidentes de maior. Cada qual faz o seu papel… E eu aceitava o meu. Acho que foram as tuas consultas que me levaram a aceitar o meu papel mais facilmente, trouxeste-me uma serenidade que nunca tinha conhecido, até me ter apaixonado por ti. A fúria, a raiva pelos que não respeitavam quem sou, quem era, já me haviam trazido amargos dissabores. Sempre fui irascível. Aquela relação, a que me levou a deitar-me no teu divã e a sentirmo-nos, levou-me ao precipício. Aquele homem, igual a tantos outros com que antes e depois me havia de deitar, fez-me perder a cabeça. Enojavam-me os seus modos arrogantes e orgulhosos. Para quê tanto pedantismo? Não passava de esterco. Um vulto sem emoções, sem defeitos, porque sem quaisquer qualidades. Um escolarizado, socializado, domesticado. Sem livre arbítrio, sem personalidade ou opiniões. E ali estava ele, a dizer-me que nos iríamos casar, porque seria bom para a sua carreira e os pais aprovavam. Quando o deixei cair inerte a meus pés, senti-me liberta e mais feliz do que alguma vez me havia sentido. Daí que achassem que estava louca, suponho!

Estranhamente, não te reconheci imediatamente. Estavas mais velho, é certo, mas não creio ter sido isso. Não sei o que foi. Talvez a sensação de surreal, de inesperado. Estavas só, como sempre te havia visto. Na mão, o teu caderninho, a tua velha sebenta. Refreei as lágrimas que me dançaram nos olhos querendo saltar e rolar brincando face abaixo. Pedi licença ao senhor com quem estava e afastei-me dele como se de um indigente se tratasse. Caminhei de frente para ti, que tinhas agora levantado os olhos para mim, rodeei-te e assentei a mão no teu ombro enquanto te murmurava ao ouvido: Lembras-te?

Amámo-nos naquela casa-de-banho minúscula como nunca ninguém amou. Com a urgência que 9 anos acarretam. Sem palavras que as acções não dissessem. No meio de lágrimas e saliva, baba e ranho. Como animais. Animais que sentem, sentem demasiado. Devíamos tê-lo feito antes, muito antes, mas não seria tão bom. Sempre achei que uma história com passado era mais bonita.


postado por cromossoma X

Procurei-te quase até ao infinito. Passei por todos os lugares que sabia que conhecias. Contactei a tua família que me avisou da tua partida, da tua viagem.
Fiquei quebrado por dentro. Por fora sentia-me mais triste. Abandonei a minha práctica e fechei o consultório. Afinal era apenas um local para te encontrar.
O dinheiro escasseou e fui obrigado a arranjar um trabalho. Felizmente com alguma liberdade, como afinador de pianos umas vezes, como explicando do mesmo outras tantas. Com este tipo de vida, continuei os meus hábitos. A pouco e pouco fui fazendo obras no armazém. Necessitava de mais conforto, agora que estava sózinho. Realmente sózinho.
No tempo livre que me restava comecei a escrever. Escrevi muito, prosa, poesia e, imagine-se, pautas que se confundiam com as palavras. Eram peças musicais para serem lidas ou vice versa. Durante uns anos ninguém as percebeu e quis editar até que um louco mais solitário que eu as entendeu e tornou-se no meu editor. Estranhamente, estes livros conheceram sucesso em países distantes, mas não no meu. Também tive o cuidado de nunca assinar nada com o meu nome e ia inventando outros à medida das necessidades.
O meu velho piano e o meu velho amigo violinista eram quase tudo para mim, davam-me o gozo das relações físicas que não tinha nem queria ter.
Os amigos e amigas foram desaparecendo aos poucos, temendo a minha súbdita loucura ou fartando-se de tentar com que eu tivesse uma vida comum. Como se isso fosse possível.
Tudo o que fazia era criado e levado pelo teu cheiro. Revia todas as noites um bocado de ti, benditas gravações. ou malditas que não me deixavam esquecer-te.
Continuei a viver assim, durante longos anos, até que senti uma mão no meu ombro.

Postado por cromossoma Y

...





8.1.08

1st short story

Não sei o que me deu, mas quando acordei olhei para o teu pescoço nú, tão torneado e perfeito, com alguns cabelos a taparem a totalidade do teu tom de pele. Tirei-os com carinho para o lado e observei-te durante algum tempo. A luz começou a entrar pelas frinchas, coisa a que nunca dou importância pois durmo para lá da manhã posta. Mas hoje fui o primeiro a acordar. Deu-me aquele ímpeto sexual de te violar dormindo, contigo a dizer outros nomes e a sussurar coisas imperceptíveis. Confesso-te, sempre me deu gozo violar-te desta forma. Sem tu dares por nada, sem tu saberes que era eu.
Mas naquela manhã não me senti disposto a isso. Pelo contrário. Queria possuir-te de uma forma mais física, mais extenuante, mais profunda. Queria ter-te toda, só para mim. E queria dar-te tudo o que eu sou, todo o que eu sou.
Levantei-me, procurei armas. Vi as facas na cozinha, brinquei um bocado com elas. Quando ia para a casa de banho olhei-te pela porta entreaberta. Vi as almofadas, seriam talvez a melhor das soluções. Não farias barulho e a cama continuaria limpa. Mas não era perfeito. Pensei então em drogar-te violentamente. Fui ao armário dos medicamentos, tirei uns quantos lorenins
que te fui dando a beber com um pouco de água de cada vez. Estavas ensonada ainda, mas também ébria da noite anterior. Fui tomar um duche, fiz a barba e perfumei-me. Antes de me vestir esbofeteei-te com alguma força e não tiveste reacção. A tua respiração era ofegante, pesada e lenta. Muito lenta.
Vesti-me e desci até à farmácia onde as duas velhas fufas sempre me atenderam com cortesia. Julgavam-me um artista pelas estranhas coisas que lá comprava e foi com facilidade que me mostraram todas as seringas que tinham. Escolhi várias, de tamanhos e larguras diferentes. Escolhi tubos de borracha castanha chocolate. Comprei também álcool e desinfectantes e mais lorenins. Atravessei a estreita rua e entrei na drogaria principal. Aí comprei diluente, x-actos, lixa, sacos de plástico para pintura, fita-gomada e mais uma série de coisas que ia vendo nas prateleiras pejadas de latas, instrumentos de precisão vária e inúmeros tamanhos de acessórios para bricolage.
Estava na hora de regressar a casa, pois os sacos já pesavam e eu tinha medo que acordasses.
A primeira coisa que fiz foi dar-te clorofórmio. E aí sim, tive toda a certeza que não acordarias tão facilmente. Depois amarrei-te suavemente as mãos à cabeceira da cama, mas cruzadas atrás da tua cabeça, pois não te queria aleijar e a tua carne serviria de apoio à nuca.
Rasguei dois lençois velhos, cada um serviu para te abrir as pernas o mais possível. Amarrei-os por baixo da cama, bem esticados. Não te conseguirias mexer. Mesmo com as dores que irias sentir.
Tapei-te com um lençol.
Depois armei a camara de video no tripé, com alguns candeeiros consegui iluminar mais ou menos bem a cama e partes do teu corpo e ainda enjeitei o teu cabelo. Rapei-te com carinho todo o prazer que me deste ao longo dos anos, as pernas não precisavam, mas eu reforcei a perfeição mas foi nos sovacos que tive mais dificuldade. Desculpa aquele pequeno corte que imediatamente tratei com álcool.
Tirei o lençol, fiz amor contigo, brinquei como quis. Confesso, fui egoísta. Nunca pensei no teu prazer. Limpei-te de seguida, lavei o teu corpo todo. Perfumei-te e pintei os teus mamilos e os lábios com o baton de que tanto gostas.
Filmei-te em video durante um minuto e tirei muitas fotografias com a digital.
À medida que o sol se levantava, sabia que tinha que sair para te ir buscar o que tanto ansiavas.
Mas ainda antes disso, coloquei uma pequena mesa de apoio ao lado da cama, de ti. Nela distribuí os x-actos, duas facas com serrilha, uma daquelas eléctricas para cortar carne ou pão, ligaduras, algodão, as seringas e os tubos, pequenos tuperwares plásticos e alguns produtos de limpeza.
Dei-te um beijo, fechei parte da janela para o sol não te ferir os olhos e saí.

Demoraste-te. Mangas maduras e perfumadas conseguem ser difíceis de arranjar numa bela madrugada de Domingo. Despertei lentamente, tremendo de frio. O teu apartamento era gelado. A dor que sentia deve ter ajudado ao meu despertar.
Quando despertei o suficiente, a dor abandonou o meu espírito e o prazer de tentar imaginar
o que fizeras comigo foi avassalador. O corpo tremia, mas não mais de frio. A droga que me deste certamente contribuiu para o meu doce torpor.
Usando acrobacias que aposto que gostavas de ter contemplado para poderes recordar durante horas a fio, lá consegui soltar uma das mãos. Reparei então na mesa ao meu lado e nos objectos que repousavam nela. O medo que me invadiu não suplantou o meu desejo. Acirrou-o. Peguei numa das facas e num x-acto. Algumas ligaduras também. Vesti o teu velho robe e guardei nos
bolsos os objectos de que necessitava. Aguardei-te sentada na pesada poltrona de veludo esverdeado com ar retro perto da porta. Fumei um cigarro.
Pûs o Marvin Gaye a tocar baixinho. Toquei-me durante uns momentos. Ouvi a porta do elevador abrir, passos, a porta do elevador a fechar e um tilintar de chaves.
Surpreendi-te assim que abriste a porta. Vendei-te com ligaduras e guiei-te até à poltrona, beijando-te. Atei firme as tuas pernas aos pés da frente da poltrona e as mãos aos pés de trás. Abri-te a camisa. Desapertei-te o cinto, o botão, o zip e abrindo o roupão, sentei-me no teu colo, roçando e sentindo o teu estado febril. Beijei-te suavemente no canto da boca, passei o nariz
pelo teu pescoço perfumado, a língua pelos sítios mais proibidos. Tudo para ti, para te dar prazer. Com o x-acto, fiz um pequeno corte no meu seio.
Passei-o pelos teus lábios. Mordi-te até saborear o teu sangue também.
Encostei o x-acto ao teu pescoço e, finalmente, avancei para o prazer a dois. Fi-lo à minha maneira, lenta e fortemente. Quando tentavas controlar, fazia um pequeno corte no teu pescoço ou nas tuas costas arqueadas. Fiz vários golpes nas minhas coxas para, com a dor, não chegar ao fim antes de ti. Só quando o teu corpo descontrolado ameaçou desabar sob mim, me entreguei por completo ao momento, girando as ancas sobre ti num movimento de serpente e no teu último esgar de prazer, amordacei-te. Não te quis drogar. Queria que sentisses tudo. A lâmina passando com vagar no teu rosto, no teu peito, nos teus pulsos. Sujei-me no teu sangue. Espalhei-o pela minha pele, pelas pernas, nas náguedas, no ventre. Tinha um tom idêntico ao meu batôn. Descuidadamente, cortei-me nas mãos também. O nosso sangue misturava-se; tu esvaías-te em sangue pelos golpes cada vez mais profundos.
Quando louca, com o olhar alucinado de tanto te querer, o corpo vibrante e dormente de tanto sofrer e o cansaço me venceu, atravessei-te o x-acto da direita para a esquerda da garganta. Descansei um pouco abraçada a ti.
Levantei-me, atravessei a sala lentamente, tomei um longo duche quente.
Vesti-me cantarolando o "sexual healing", ajoelhei-me no chão junto a ti, beijando tuas mãos, chorando-te, e saí algum tempo depois, usando o teu sangue como batôn.

Postado por cromossoma X


Foi bastante tempo depois da tua saída que acordei.
O teu impulso ao cortar-me a voz foi já cansado e extenuado e o golpe que deveria ser fatal não o foi.
Também foi com dificuldade que consegui atirar o cadeirão para o lado. Com uma mão esforcei-me para agarrar numa das lâminas partidas de x-acto.
Estava com muitas dores e bastante fraco. Perdi muito sangue. Menos do que pensava, pois metade era teu.
Consegui após alguns momentos desprender-me do cadeirão. Ainda fiquei muito tempo deitado a tentar recuperar forças.
Mas o cheiro do nosso sangue e do nosso sexo, que ainda perfumavam o ar, encheram-se esse doce e semi-sono.
Levantei-me a cambalear e fui à casa de banho. A maior parte dos cortes estavam já secos, menos o da garganta, em que enrolei uma gaze bem apertada.
Por sorte, conhecia uma médica, aventuras de outros tempos, e telefonei-lhe. Foi ela que ao chegar a minha casa deu um grito de horror.
Mas sem mais perguntas, deu os pontos necessários para fechar as feridas mais profundas depois de desinfectá-las.
Suportei a dor, como suportei a operação.
Aí deitou-me na banheira, já preparada com um qualquer desinfectante no meio de uma água turva e quente. E deixou-me adormecer.
Quando acordei, procurei-a mas já tinha saído. Encontrei apenas um papel onde estava escrito que não te procurasse.
Que nunca mais te procurasse.
Amarrotei o papel e atirei-o para o lixo.
O meu aspecto não estava assim tão mau, para quem esteve quase morto.
Agora enchia-me a vontade de te ter outra vez, dominava-me. Ressuscitava-me.
Em poucos dias de antibióticos voltei a sair à rua, ainda fraco.
Alimentei-me bem, mas a tua cara, o teu sabor e o teu cheiro cegavam-me.
Estava na hora de te reencontrar.
E parti ao teu encontro.

Postado por cromossoma Y

Cheguei a casa fraca. Marcada na carne, o sangue ainda a escorrer numa das pernas, um sentimento estranho no peito e o teu gosto nos meus lábios. Estranho pensar em ti, agora que estavas morto. Pensei que ao matar-te me libertasse do teu ser um tanto obssessivo, da nossa relação doentia. O teu cheiro ainda estava em mim. Tomei outro banho. Fiz um curativo. Tentei esquecer, tentei descansar. Eu não queria, mas teve que ser assim, percebes? Se eu não o fizesse, tu acabarias por fazê-lo a mim... e não podia permiti-lo; não podia, sabendo que o planeavas, que te sentias pronto para me perder.

Adormeci enquanto nos recordava na poltrona e imaginava pela milionésima vez o que me terias feito enquanto drogada. Querias carne?! Eu dei-ta! Só não me havia apercebido que ao dar-te o que tu querias, estava a dar-me também o que há tanto tempo esperava sem saber.

Na manhã seguinte, senti pena de mim. Tu não sofrerias a perda. Invejei-te. Vesti-me de preto por ti, embora me vestisse habitualmente de negro. Passei o batôn pelos lábios e imaginei-te observando-me, sorrindo. Dirigi-me ao café do costume e mesmo antes de pedir a bica e o pastel de nata, agarrei o jornal, sentei-me e folheei nervosamente a necrologia. Não constavas. Ninguém te devia ter descoberto ainda. Fechei o jornal e tentei afastar a tua imagem, morto, na poltrona, naquele apartamento, do meu pensamento.

Obriguei-me a ter um dia normal. O dia estava frio e bonito, com um sol ainda envergonhado mas prometedor. Fui trabalhar. Saí para almoçar com umas amigas. Voltei ao trabalho e de lá para casa.

Dia seguinte, ainda mais cedo e sentindo-me angustiada, entrei no café e abri o jornal sem sequer me sentar. Nada! Como era possível?! Tentei lembrar-me das nossas conversas, se algum dia comentaras alguma coisa sobre a tua família. Não tinha ideia nenhuma de o teres feito. Tinhas um ou dois amigos próximos, mas quanto tempo demorariam eles a ir à tua procura? O pensamento mortificou-me.

Nessa noite despi-me completamente, olhei as cicatrizes que eram tuas. Precisava de te sentir novamente. As tuas mãos e o teu calor em mim, a tua voz quente no meu ouvido e a louca e doce dor que trazias ao meu corpo. Ansiosa, tremendo, procurei o estojo das unhas, retirei o objecto mais cortante que havia nele. Arranhei-me com força e desesperadamente até sangrar, na perna, um pouco acima do joelho. Assim fiz amor contigo nessa noite, uma e outra vez, naquela casa-de-banho.

Acordei mais pálida que nunca. Sentia-me sepultada por ti. Julguei ser mais fácil sobreviver-te. Devia ter-te deixado matares-me.

Decidi beber o café da manhã descansada, olhando pela janela, observando quem passava e adiar a procura no jornal. De seguida iria à polícia. Não podia deixar-te assim durante mais tempo.

A porta do café abre-se, levanto os olhos. O vulto é-me familiar. Páras a olhar-me. Quando me refaço do espanto, a minha palidez ganha cor e lanço-te o sorriso mais quente e radioso que alguma vez consegui fazer.

Postado por cromossoma X


Olhei-te, como já o estava a fazer pela montra sem dares por isso. Mas escolhi a mesa mais afastada de ti e sentei-me de costas. Sabia que irias aguentar todo o dia se fosse preciso e, para continuar a tentar recuperar as forças ainda perdidas, pedi um pequeno-almoço invulgar para quem nunca o toma.

Demorei uma ou duas horas a comer. Não me lembro.

Quando me levantei, deixei um telemóvel em cima do jornal. Era para ti. E seria por ele que iriamos comunicar. Nunca por voz, como te deixei na mensagem escrita, mas só através de palavras.

Não olhei para trás quando saí do café para me certificar que tu correrias para a minha mesa antes que o empregado a viesse limpar. Meti-me no carro e segui para um armazém que estava para arrendar. Faria o negócio hoje e mesmo parte da mobília de casa seguiria para lá.

Já acomodado, gostei do espaço. Era grande e a luz entrava pelo tecto, através de telhas de vidro transparente mas sujas. Era um lusco fusco que me agradava.

Numa das prateleiras velhas que já estavam no armazém, arrumei as cassetes de video com as tuas imagens. Uma a uma. Pela ordem do tempo. Eram muitas, filmei-te muitas vezes sem o saberes. Filmei-te a dormir, a tomar banho, a fazer amor, na rua, à janela do teu emprego, com as tuas amigas. Filmei horas intermináveis que queria agora recuperar, rever até ao último fotograma através de um projector de video que enchia a única parede que pintei de novo e de branco.

Coloquei o meu sofá, pintado a sangue seco, mesmo defronte à parede e resguardei-me do frio com uma manta por cima das pernas. Abri uma garrafa de conhaque e pressionei play na camcorder que estava ao meu lado.

Enviei-te uma mensagem.

"Estou a ver-te. Toda. Como eras. Como já não és. Estou a rever-te pura e a lembrar-me de todos os sentimentos que tive quando te vi pela primeira vez".

Desliguei o telefone. O outro antigo, o número que toda a gente tinha, já estava num caixote de lixo qualquer.


Postado por cromossoma Y



Sorria-te como uma criança embevecida. Tu olhaste-me friamente e com uns modos distantes, viraste-me as costas e sentaste-te.

Um misto de emoções invadiu-me. O alívio por estares vivo, o terror pela certeza do castigo que adivinhava longe e tortuoso. Pensando nisso, voltei a sorrir… era óbvio que o irias fazer, era algo muito próprio de ti. Vieste para te mostrares e para veres se eu estava bem. Tiveste a resposta que querias. Estava arrasada, mas não o suficiente. Não o suficiente para ti. Tu querias mais, ir mais longe, testar os meus limites. Não descansarias enquanto não o fizesses. As cicatrizes na cara nunca te deixariam esquecer… Aceitei as tuas regras e permaneci sentada no meu lugar, em parte porque achei que o castigo era merecido, e porque tinha a oportunidade de contemplar-te, o que me dava mais prazer do que calculavas, pois doutra forma não terias vindo.

Finalmente foste embora. Apanhei o telemóvel que me deixaras, meti-o no bolso de trás das calças como forma de te sentir próximo, esperando senti-lo vibrar e vibrar com ele.

Quando recebi a tua mensagem, foi a confirmação do que já sabia. Tinha que fugir. Estavas louco. Cego pela sede de vingança. E tu cobrarias alto demais. Um preço que não estava disposta a pagar, até porque não me arrependia de o ter feito. Tu é que tinhas mudado e despoletado a situação. A tua doçura perdera-se e com ela a minha também.

Peguei no telefone, liguei para o emprego e pedi uma licença sem vencimento. Aluguei uma casinha isolada, térrea, com vista para o mar revolto de Inverno, no Sudoeste Alentejano. Fiz as malas à pressa. Junto guardei o bilhete que me havias deixado em cima do jornal, no café. Gostava da tua letra.

Tirei uma fotografia P&B, sem rosto, do meu corpo nu, coberto de cicatrizes. Nas costas escrevinhei: “Vou em busca da pureza perdida. Fazes-me mal. Não me procures mais. O telemóvel que me deixaste, atirei-o para um caixote do lixo qualquer”. Meti-a num envelope branco. Passei por tua casa e deixei-o na tua caixa de correio.

Postado por cromossoma X

Foi por acaso que recebi a tua carta, pois tinha vendido o apartamento e vivia de vez no armazém outrora abandonado, agora o meu refúgio. Foi ao pagar contas triviais, como o último condomínio ainda em falta que a porteira me entregou o correio. E nesse maço de cartas e papeladas várias estava a tua.

Não esperava isto de ti. Tinha passado os últimos tempos como um recluso, evitando a luz do dia, as pessoas do dia, enfim, o próprio dia. Luz que me traía o objectivo e a sede. Luz que me empurrava para ti, mas que eu tinha que dominar.

Pela primeira vez não sabia o que fazer. Tinhas desaparecido, para o Alentejo, ao que julgo. Para uma casa térrea. Mas sei que estaria junto ao mar, isolada de todas as outras e que uma luz permaneceria acesa numa janela. Para me afastar ou para me chamar.

O armazém estava já composto. Tinha encontrado uma cama de dossel. Tinha aparafusado nas paredes todo o tipo de acessórios, desde porta-velas a cordas, algemas, correntes. Tinha construído um colchão de pregos, mas estava escondido por dois grossos colchões de látex, onde eu tentava dormir todas as noites, sem sucesso.

Rapei o cabelo, emagreci. Às vezes fazia a barba. Outras era impedido pelo espelho e pela fraca luz que lhe batia e me mostrava quem eu era. Mudaste-me, mas enquanto o miserável tempo passava, mais eu tinha vontade de te rever, de te ter, de te reencontrar, de ser mais teu que tu minha.

Não me deste outra possibilidade que iniciar uma viagem. Logo eu que detesto viajar. Vendi o carro e comprei uma motocicleta, potente, que me permitisse andar sobre dunas e fazer baixas marés. Não iria com muita bagagem. A roupa comprá-la-ia quando houvesse necessidade. Passava os dias em pensões, para fugir da luz. E encurralava-te pela noite, como um lobo, como um louco.


postado por cromossoma Y

Havia chegado àquela casa há pouco tempo e já parecia que lá estava há semanas. Era pouco aconchegante, tirando a pequena sala com lareira. Fiz uma limpeza grande. Encontrava-se desabitada há muito.

Saí para ir à terreola mais próxima fazer umas compras. Comecei a preparar-me para a tua chegada. Fui à farmácia e, contando a história de estar sozinha, ter medo e ter que me defender, comprei uma lata de spray da gás-pimenta e clorofórmio. Na retrosaria, comprei tiras de tecido aveludado para o caso de ter que te amarrar. Nem fugi muito à verdade. Louco como andavas, o mais certo era vires atrás de mim. E eu estava aterrorizada com o que me farias. Por outro lado, não sabia o que fazer se o tempo passasse e não me achasses. Se não viesses. Não sabia viver assim. Não queria viver assim. Queria ter-te de novo. Repousar a cabeça no teu peito, sentir o teu pulsar, viver na tua loucura. A tua demência iluminava a minha vida. Contigo, os dias nunca eram iguais, o coração vivia numa feliz angústia e os meus lábios viviam para te sorrir.

Tinha tido a preocupação de me manter discreta por onde passava para que não fosse fácil achares-me, mas uma mulher sozinha, pálida, olhos grandes e claros por aquelas paragens não passava despercebida. Fiz-me sócia da biblioteca itinerante e requisitei muitos livros. A casa, em cima da duna, tinha um velho alpendre de madeira podre aqui e ali. Passei dias sentada no alpendre a ler, esperando-te. De vez em quando parecia-me que alguém me olhava. Parecia-me sentir o teu cheiro, misturado com a maresia. Dei longos passeios a pé pela praia. Muitas vezes, sentava-me numa rocha e a mente perdia-se em ti. Lembrava-me de nós. Da fricção que fazíamos. Das nossas almas tão em sintonia que até assustava. Mas agora tinha medo de me entregar.

Alimentava-me a café e cigarros e o meu pensamento afastava-se cada vez menos de ti. Sentia-te cada vez mais próximo.

Ao fim de três semanas, já de noite, lendo junto à lareira, julguei ouvir um barulho de motor. O coração disparou-me, ameaçou subir à garganta e logo o meu desejo por ti deu sinal de não ter morrido. À pressa, abri a garrafa de vinho que tinha comprado para nós e verti o líquido para dois copos. O gás-pimenta e o clorofórmio foram para o meu bolso. Esperava que não fosse necessário apaziguar a tua raiva e beijar-te dessa forma, mas, duma maneira ou de outra, ter-te-ia mais uma vez, ou tu ter-me-ias.


Postado por cromossoma X

Ao longo do caminho até ti, confesso-te, fui-te infiel. Infiel a ti, a mim, ao mundo. Amei com fúria, deixei rasto de sangue, de esperanças e de desesperos. Não tinha travões, não sabia, por vezes, o que fazia. Mas a carne branca das gentis donzelas que se aproximavam de uma estranha coruja corrompiam-me o objectivo e a razão. Usei tudo o que podia, mas nada me satisfez. Nem a morte, nem a vida, nem a palidez, nem a virgindade.

Percorri quilómetros sobre quilómetros, cego às vezes, outras com uma visão tão clara que da noite fazia dia.

Foi por mero acaso que te vi, numa das tuas idas à farmácia local. Deixei os pertences e segui-te a pé. Fiquei a saber a tua luz, o teu alpendre. À noite, enquanto dormitavas, li algumas partes dos livros que deixavas no alpendre. Vi muitas linhas sublinhadas, algumas frases riscadas. Outras reescritas. Tinhas ainda a paixão em ti e não acreditavas na verdade e no amor dos outros. E quando não acreditavas, substituía-las por ti e por mim.

Cada vez te queria mais. Cada vez te sabia mais.

Deixei para outra noite o nosso reencontro.

Aguardei no alpendre do teu casebre enquanto me esperavas. Mas fui paciente e tu desesperaste. A tal ponto que bebeste toda a nossa garrafa. E adormeceste embalada pelo doce torpor do álcool. Aí entrei sorrateiramente para não te acordar. Usei as tiras de veludo que compraste para te amarrar à cama de ferro forjado. Parava com o coração aos pulos assim que te mexias, mas nunca acordaste. Amarrei-te bem. Os pés e as mãos. Rasguei o teu vestido com o x-acto que sempre me acompanhou. De cima para baixo, até ao pescoço.

Descobri a tua lingerie tão perfeita como tu, branca como o dia, mas clara como a verdade. Ali estavas, banhada pelo gentil luar que entrava pela janela com um qualquer pano que meteste a esvoaçar. Nunca nada tinha sido tão belo. E tão perfeito.

Amordacei-te com o último pedaço de veludo que ainda restava, mas não te droguei. Já estavas semi alcoolizada e o sexo iria saber-te como rosas, como o fim do mundo, como gostavas, livre, sem dogmas ou travões racionais.

Cortei as tuas cuecas. Cortei depois o soutien. Agora estavas toda nua. Toda minha. Vi os teus golpes. O da mama já quase cicatrizado. O do joelho, ainda em crosta. Todos os outros que já tinham fechado e aqueles que mantinhas abertos. Com o x-acto, recortei com perícia o mesmo golpe no teu seio. E chupei. Alimentei-me de ti até a ferida fechar. Acordaste.

Olhaste para mim incrédula. Fizeste um esforço para me abraçar, mas estavas presa. Eu abracei-te por ti e por mim. Abracei-te quase até te sufocar. E tu vibraste. Gemeste. E vieste-te pela primeira vez.

Penetrei-te suavemente enquanto te beijava todas as feridas, todo o corpo, todas as curvas. Toda.

Agarrei no teu cabelo e puxei-o com força, o que te causou dor e foi aí que pensaste que seria o recomeço do que teria que acontecer. Desta vez sem intervalo. Sabias que era a tua última noite de amor. De vida. De uma doce vida. De uma vida inteira.

Eu continuava a amar-te. Desprendi-te as pernas para te ter ainda mais minha, mordi-te com força os mamilos até fazer sangue. Tu preenchias-me, sufocavas-me, também me possuías.

Foi ao mesmo tempo, como só a perfeição consegue muito de vez em quando.

Quedei-me a teu lado, meio morto, muito extenuado de toda a procura, de todo o desespero.

Mas queria marcar-te como tu me marcaste. Queria que as nossas faces fossem iguais. E disse-to. Tu choraste, não sei se por amor, se por desespero. E essas lágrimas travaram o meu ímpeto de te tornar igual a mim. Parei. Prendi-te novamente as pernas, com tal suavidade e respeito e amor que nem o último grito desesperado de um amante conseguiria.

Saí da cama, vesti-me. Agarrei no teu frasco de clorofórmio e enchi uma parte de algodão, que enfiei por baixo do veludo. Adormeceste rapidamente. Tirei o algodão logo depois e desapertei-te todas as tiras, todas as prisões.

Deixei-te um pequeno anel no umbigo. Ao lado o x-acto. Deixei também um bilhete dizendo que ia para o meu armazém, a minha nova casa. E deixei-te escolher. Saí cansado, angustiado mas feliz.

Cheguei à vila, agarrei na motocicleta e, antes de ir para casa, ainda fiz parte da costa a voar baixinho na maré baixa. Sentia-me um nobre cavaleiro. Um amante como já não há.

E estava feliz.

postado por cromossoma Y


Acordei assustada. Dos olhos caíam-me ainda lágrimas. Lágrimas de quem amou e tinha sido amado como nunca até então. Lágrimas de perdão pelo que me fizeras, de culpa pelo que te fizera. Lágrimas de felicidade por me ter, finalmente, entregue a ti e por te sentir meu. Todo meu. Procurei-te olhando em redor do quarto que a lua continuava a iluminar languidamente. Vi o x-acto ao meu lado e percebi que tinhas desistido da ideia louca da vingança, que só levaria ao fim daquele amor tão puro, tão ingénuo. Que queria tão pouco e que dava tanto. Não precisávamos de nada para sermos felizes. Poderíamos viver de nós. Sentei-me na cama e o anel resvalou do meu umbigo para onde só tu sabias tocar. O mero toque desse anel me fez estremecer. Levantei-me e nua caminhei pela casa ao teu encontro. Voltei ao quarto, pensando que brincavas comigo, como brincávamos no início. E foi então que vi o bilhete. Um grito subiu-me das entranhas à boca, sufocado pelos soluços que não me deixavam respirar. Amarrotei o papel por entre os dedos, descontroladamente. Não paravas. Tinhas sempre uma na manga. Mais um jogo. Mais uma defesa. Nunca te entregarias por completo. Soube-o naquele momento. Nunca serias meu. Não como eu te queria. Inteiro. Sempre. A tua alma muito mais que o teu corpo. Quando é que tu ias perceber que eu queria o conto de fadas? A dolorosa resposta era “Nunca”.

Sem saber o que fazer, deixei-me ficar por mais uma semana naquela casa. Não comia. Não lia. Dormia. Dormi muito. Quis dormir para sempre. Até que me decidi. Fiz as malas. Não tinha muita coisa. Fiz-me ao caminho e não parei como costumava fazer. Fui directa à tua nova morada. Parei o carro e fiquei dentro a olhar a pesada porta de ferro cinzento à minha frente. Queria dizer-te que te amava. Nunca to tinha dito. Era chegada a hora. Queria abraçar-te e beijar-te quando abrisses a porta e mostrar-te quem eu era. Toda. Só tua. E estava ali para ti. Para que fizesses o que entendesses de mim. Para chorar e pedir perdão. Implorar-te que me amasses também e voltasses a fazer de mim uma mulher una. Para a entrega completa.

Nesse momento, como por magia, a porta abriu-se. O que vi através dela, nunca irias ser capaz de me fazer esquecer. Tu, mais bonito e feliz que nunca. Ela a aparecer, esticando as mãos para o teu rosto. Beijando as cicatrizes que eram minhas, o homem que queria para mim. Beijaram-se longamente. Uma das tuas mãos no seu pescoço, outra no seu rabo. Rindo como crianças. Fizeste-lhe alegremente um sinal para que ela te telefonasse. Nunca mo havias pedido. Nunca querias falar comigo. Era tudo por bilhetes, mensagens, mails.

Desceste o degrau, aproximaste-te do passeio, levando a senhora ao carro. Ela toda serigaita, tu todo sorrisos e falinhas mansas. Um esgar de dor assolou a minha mente, já de si doente, dilacerando tudo à nossa volta, fazendo com que o mundo desaparecesse e eu me sentisse a cair a velocidade magna. O ódio arrasou-me e sem pensar, com os olhos rasos de água e o lápis preto dos olhos a desfazer-se já até à boca, meti a primeira e arranquei direita a ti, olhar no infinito. Só parei quando te vi no chão. Saí do carro e olhei-te bem nos olhos, enquanto me olhavas surpreso no chão. Ajoelhei-me junto de ti. “Pensei que me amavas”, disse-te num fio de voz. Levantei-me e pontapeei-te no sítio onde mais te doía. Voltei para o carro, tranquei as portas e, incapaz de conduzir, deixei-me ficar ali, em pânico, e histérica durante muito tempo. Apaguei o cigarro que estava a fumar na minha perna nua, para fazer parar a dor. Do lado de fora do carro, sentia-te já de pé, estático.

postado por cromossoma X

Era a segunda vez que me matavas. Uma por medo outra por despeito. Infelizmente, não percebeste que o fizeste na rua, em plena rua. E deverias ter desaparecido, trucidando-me ou evitando-me. Nada fizeste. Quedaste-te à espera da fúria bairrista que já me aprendera a amar, e dois ou três carros da PSP, desses modernos e com agentes com gel na cabeça.

Foste presa. Eu fui inquirido. Sim, eu disse que me quiseste matar. Mas como estava vivo, não havia prova e eu sabia-o. Saíste em liberdade antes de mim, pois tive que preencher mais papelada que tu.

Só que, quando saí, deparei-me com uma luz que nunca tinha visto, com um sol que me aqueceu a face e o corpo. Estava literalmente preenchido pela vontade e força de um deus. E, num repente, atingi o nirvana. Uma ligeira dor nas costas perturbou-me esta alegria e refugiei-me para um canto escuro. De repente duas asas magníficas cresciam nas minhas costas. Todo o meu corpo mudou, tornando-se esquelético e esbranquiçado. Até o meu cabelo cresceu.

Terei morrido? De verdade? Ter-me-ias matado?

Ou seria um anjo, aquele que te protegeria até ao último dos teus dias?

Voei sobre a cidade até à minha nova casa. Sabia perfeitamente que estarias nela, a olhar para tudo o que eu fizera e preparei para ti. Mas naquele momento, nada disso fazia sentido. Procurei-te e lá estavas no cadeirão sujo de sangue seco, já rosa velho.

Não sei se o teu olhar foi de espanto, receio, ternura ou amor. Mas sei que eras novamente minha, toda e sempre minha.

Com estas minhas novas asas, que apalpaste, aconchegaste, mexeste, abracei-te como só um deus abraça a sua deusa.

Quedámo-nos por ali, durante essas horas noctívagas. Dormimos o sono dos justos, tu sempre abraçada por mim. Nunca nos mexemos, nem um milímetro. A nossa respiração era una, simples, uníssona. Até que os primeiros raios de sol penetraram pelas vidraças sujas lá do tecto. E aí acordaste, mordeste-me, tornaste-te violenta, negra, sanguinária.

Era esta a nossa paga. Eu divagaria, voaria pela minha cidade durante o dia, tu esconder-te-ias da mesma luz. O destino estava traçado. Parecíamos vampiros sem o ser, amantes desafortunados para sempre.

Eu, confesso, não estava mesmo à espera disto e deixei-te fugir pela pesada porta de ferro, aos gritos, como que se te queimasses com um raio de luz. Luz que era toda a minha vida e com a qual me alumiavas todo o caminho.

Prostei-me silencioso, cego, sem saber o que fazer. Nada fazia sentido.

Seria este um sonho demente, febril? Doente?

Seria isto o amor?

Olhei para o céu, abri as asas e fui procurar-te.


postado por cromossoma Y


O teu abraço viciante, que me acalmava e não me deixava respirar, era tudo quanto eu precisava, mas não podia. Não podia esquecer a traição. Inconscientemente, castigar-te-ia, torturar-te-ia para sempre e nunca to deixaria esquecer.


Mesmo sem o saber, fiz um voto de silêncio. Nunca mais ouvirias a minha voz rouca murmurando doces palavras no teu ouvido. Nunca mais discutiríamos, ou me ouvirias cantar. Falar-te-ia apenas com o olhar.


Voltei todas as noites, após essa, por muito tempo. Vinha para ti. Para te ver. Deixaste-me a tua chave e eu entrava no teu mundo. Na parede, havia fotografias P&B dos meus olhos, do meu pescoço e da minha boca, que havias tirado com a digital. Por lá ficava enquanto fosse noite. Nunca de dia. De dia partia, mesmo quando não tinha rumo. Partia com o primeiro raio de luz que ousasse passar o teu telhado.


Quando estavas, entrava, descalçava-me, aproximava-me de ti em silêncio, permitia que me despisses sem falares, e beijava as cicatrizes de todo o teu corpo, enquanto tentava sanar as da alma. Enroscava-me em ti, passava as mãos levemente pelas tuas asas, voava contigo, mordiscava os teus lábios, bebia-te, passava a língua pela tua pele, alimentava-me de ti, amava-te até à exaustão.


Quando ainda não estavas, desnudava-me e esperava-te. Às vezes amarrada aos pés da antiga cama de dossel com os “voiles” brancos que dela pendiam. Outras, algemada numa qualquer argola de ferro na parede enquanto te deitava um olhar ingénuo e selvagem. De outras ainda, carregava uma das correntes que compraras, atada à minha cintura e fingia dormir na carpete chocolate da tua sala. Algumas noites não vinhas, mas eu quedava-me à espera e nunca da minha boca ouviste um suspiro de desalento ou fúria.


Quando vinhas, o espectáculo montado obrigava-te a amares-me. Quando o espectáculo não te bastava, ia mais longe, e amava-me à tua frente, bem junto a ti, para que visses e sentisses o meu corpo vibrar. Para que te inebriasses com o odor, sob a estranha luz do luar que emanava através das telhas de vidro. Eram só esses os sons, os suspiros, os quentes gemidos, a voz do meu amor, que permitia que ouvisses. Nunca mais uma palavra. Nesses dias, entregava-me para que te satisfizesses como quisesses. Para que o encaixe fosse perfeito e a minha entrega completa. Para saciar o teu egoísmo. No fim, olhava-te languidamente e sabia. Sabia que ia sempre voltar ali, para dormir protegida nas tuas asas, para que me sentisses, para que me tivesses, pelo sentimento de pertença. O sangue era apenas o preço a pagar.

postado por cromossoma X

Sangue. Que sangue? Apenas uma cor no meu dia e noite, preto e branco. Uma cor que atraía, mas os teus cinzentos olhos faziam o mesmo. Queria-te tanto, amava-te tanto que tinha problemas em tocar-te, acariciar-te. Os meus belos dedos carnudos viraram unhas cortantes. Os meus beijos, lâminas afiadas, os meus abraços, cortes profundos.

Mas quem sou eu? Que ser é este que tomou o meu corpo e fez dele um elemento de tortura? Quem sou eu, onde estou? Estou em ti, eu sei, mas quando? Onde?

Redescobri a solidão, voei para longe, para as terras do norte cujas escarpas moldam as vagas do mar furioso. Não tenho medo. De nada tenho medo. Apenas um só ser me fraquejava nesta vida e eras tu. Apenas tu me diferenciavas dos deuses, dos eternos. Eras carne carnal, sangue e alma. Tal como eu era, antes de ser o que eu não sei o que sou.

Restava fugir ou violentar-te, amar-te mais uma vez.

Decidi fugir.

Dentro de ti estava a semente de um amor puro e uno. Um amor desigual, um feto anormal, um ser que dominaria o tempo e a vontade. E a unidade.

Por mim, o trabalho estava feito. Tinha-to deixado no teu colo, dentro de ti. E queria ser amado outra vez como há anos me amavas.

Só que agora, eu era dois em um. E não sabia qual de nós amarias mais.



postado por cromossoma Y



Agora sim, a tua vingança era completa. Tinhas o que querias. O castigo que a início eu havia achado que seria longo e tortuoso, havia encontrado o seu fim. Agora estava devastada a um ponto sobre-humano, tínhamos ultrapassado todos os limites. Poder-te-ias esquecer das cicatrizes, aprender a viver bem com elas, até te tornavam mais atraente. Já eu, tinha algo que nunca poderia esquecer. Ao acabares comigo, com o pouco de humano e belo que ainda residia em mim, deixaste algo onde procurar recuperar a pureza perdida.


Não vou fingir que não pensei em abortar. Pensei nisso durante os dias de desespero que vivi quando partiste. Também pensei em ir atrás de ti, mas a dignidade era a única coisa que me restava de só meu, o único sentimento que não havias destruído por completo.


Voltei para o meu pequeno apartamento. Antes porém, deitei fogo ao teu armazém e a tudo o que estava dentro. Aquele cremar fez-me bem. Senti-me renascer. Matriculei-me num curso de pintura e artes plásticas. Voltei ao trabalho.


Algum tempo depois, ao dirigir-me ao consultório de obstetrícia em que tinha marcado uma primeira consulta, reencontrei um velho amor. Caminhou comigo. Acompanhou-me na consulta. Fez-me o jantar e fez-me rir como há muito não acontecia.


No dia seguinte, surpreendeu-me à saída do trabalho com um babygrow e um ramo de flores selvagens. Tirou-me o cigarro da boca antes que o acendesse e disse-me com uma voz firme: “Vou cuidar de vocês… os dois”!


E eu precisava de alguém assim… como eu precisava de alguém que me amasse e cuidasse de mim… como eu precisava de alguém em quem repousar.


Não o amava. Não como te amava a ti. Mas amava o amor que tinha por mim, pelo nosso filho e a forma doce e presente como o fazia.


Postado por cromossoma X

Percebi a corte desse homem a que no fundo nos ligaste. Percebi que era um bom homem que vos trataria com mestria, engenho e calor. O nosso filho não seria igual aos outros e ele só vai aperceber-se disso daqui a uns anos. Talvez tu o perceberás e entenderás mais cedo que ele e aí só tens a solução de voltar para mim.

Fizeste bem em destruir tudo o que era meu, pois eu agora já outro sou e preparo-me para todo o ensinamento que me vai ser exigido daqui a uns tempos.

Esperar-vos-ei onde o rio nasce limpo e pequeno, onde o silêncio faz sombra ao sol e onde as noites são claras e transparentes como água.

É o meu trabalho agora. Será a nossa casa depois.


postado por cromossoma Y

O nosso filho nasceu. As lágrimas correram-me pela face assim que te vi nele. Tinha o teu cheiro. Também era calado. Comunicava pelo teu olhar. Também precisava de mim.


Não lhe falei de ti. Não sabia como. Eu própria queria esquecer-me de ti, caso contrário ia querer-te de volta.


O meu velho amor começou a sentir-se de parte. Não lhe prestava a atenção que merecia, mas ele suportava com valentia e durante anos nunca me perguntou pelo pai ou que cicatrizes eram aquelas do meu corpo.


Ainda assim, saiu de casa no dia em que me encontrou amarrada à cama, com o corte no seio novamente aberto e lhe implorei que me deixasse provar o meu sangue da boca dele.


O nosso filho cresceu atormentado por sonhos. Quando mos contava, à mesa do pequeno-almoço, tinha que me controlar para que não soubesse que era connosco que sonhava. Ele sonhava com o que tínhamos feito, com quem tínhamos sido, juntos. Descreveu-me o teu apartamento, a casa do sudoeste, o armazém. Eu olhava por entre os cortinados da janela da cozinha e queria que partisses de vez. Queria que me deixasses viver em paz. Queria ter descanso e que não levasses o nosso filho contigo quando adormecia.


Para mim não havia mais nada. E a continuar assim, depressa o nosso filho não viveria para mais nada senão para te sentir e compreender tudo o que eu tinha vergonha de lhe explicar. O nosso amor sanguinário, o desejo que encerravas em mim, os vampiros em que nos tornáramos.


Ele compreendeu. Deixou de me falar nisso. Mas eu via-o cada vez mais longe de mim e mais próximo de ti. Não fora eu quem tivera a oportunidade de renascer, foras tu. Vê-lo pela casa enlouquecia-me, e conforme crescia, dei por mim a pensar algumas vezes nele de forma pouco casta.


Por essa altura, os nervos começaram a fraquejar, e para poder continuar sem sentir o vazio que era a minha vida sem ti e sem mim, tomava calmantes, anseolíticos, anti-depressivos, fumava drogas leves e dormia. Tentava tudo para adiar o inevitável e para ignorar que passavas agora muito tempo sobre a minha janela, observando-nos e vendo-me afundar, à espera do momento certo para me deitares a mão ou esperando que saísse à tua procura. Eu sentia o meu fim cada vez mais perto. A hora de te procurar como uma miserável a quem não resta mais nada, aproximava-se.

Postado por cromossoma X



Eu senti o teu desespero em cada segundo da minha vida. As minhas asas fraquejavam na cada vez mais dolorosa viagem da casa que preparava para nós e a tua, vossa.

Consegui, no entanto, fazer um pacto e tive autorização para proferir sentimentos, frases, palavras durante 15 minutos.

Foi numa noite que estavas febril, drogada mas a dormir profundamente que entrei pela primeira vez no quarto do nosso filho. Utilizei cada milésima desse quarto de hora. Ensinei tudo o que me fora ensinado. Tornei físicas todas as suas ansiedades e dúvidas. Abracei-o longamente com as minhas asas, agora já sem muitas penas. Seria a última vez que o veria. A ele e depois a ti. De mão dada fomos até à tua cama, onde nos deitámos os três. A noite estava clara, com uma lua a que se podia chegar apontando com um dedo.

Desculpa meu amor, o fracasso de um amor eterno. Tentei-o como tantos homens valentes anteriores a mim o fizeram. Mas nunca se deu o milagre.

Enquanto as horas passavam, o nosso filho ia crescendo e olhando-me nos olhos, enquanto eu ficava velho, cada vez mais velho. Ele compreendeu-me e todo o meu amor por ti passaria por ele. Ele sentia-o e nuns breves momentos foi a criança mais feliz do mundo.

Virou-se e aninhou-se em ti umas horas depois, não que queria ver desaparecer. Mas deu-me a mão até o meu corpo se tornar alma e transparente. De mim, quando acordasses, só verias o meu peso daquela lado da cama. Mas ele iria dizer-te coisas mágicas, coisas perfeitas, todas as coisas que eu sempre te quis dizer.


Adeus, meus amores.

Olhem para o céu quando pensarem em mim. Eu cintilarei um olho e vocês saberão que estão para sempre guardados no meu coração.



postado por cromossoma Y

The End